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Incompetência institucional: TAC da Educação no Leningrado e o descaso da Secretaria Municipal de Educação

28 jan

“O teto, o pão e a liberdade
Não são favores, são direitos”
(Noel Delamare)

Reivindicação do morador do Leningrado em vinda da Prefeita Micarla de Souza para analisar a linha recém-inaugurada do Circular que liga Guarapes ao Leningrado, que há oito anos vem sendo pleiteado pelos moradores.

O Conjunto Habitacional Leningrado não surgiu de mãos cruzadas. Na Semana Santa de 2004 as famílias se organizaram no assentamento que, após briga judicial acerca da titularidade do terreno, em 2006 viu erguerem-se as primeiras casas populares que se tornaram a moradia deste povo que, ainda hoje, afirma que o Conjunto é “um depósito de gente”.

Esta afirmação, repetida por várias vozes em incontáveis vezes (que não tiveram vez e voz, frise-se), decorre da compreensão de que não basta ter a casa, é preciso todos os equipamentos urbanos públicos que conferem infra-estrutura e dignidade a seus moradores. Por óbvio, não é possível suscitar uma vivência familiar e comunitária saudável sem a presença de mecanismos de efetivação de transporte, saúde, educação, lazer, cultura e segurança.

Cada um destes direitos, elencados na Constituição Federal, merece um texto a parte quando se trata do Leningrado, conjunto habitacional em que aproximadamente 500 famílias vivenciaram o processo de desfavelização incompleta no seio norte-riograndense, saindo de favelas, ocupações e assentamentos para as casas que vieram em parceria do Município com o Governo Federal.

São a versão potiguar dos ninguéns de Eduardo Galeano: estatísticas humanas, mãos sem rostos que valem menos que a bala que os mata. Para a Prefeitura, claro. Porém, cada morador tem um relato único de ausência e negação de cuja riqueza não se pode olvidar. Apenas quem sente na pele o preconceito e as violações aos seus direitos sabe como é difícil erguer a cabeça no outro dia. E hoje nova violência acometeu o Leningrado. Esta, mais uma vez, de incompetência institucional.

Em 2011 restou firmado um TAC – Termo de Ajustamento de Conduta – em que a Secretaria de Educação encarregou-se de promover um levantamento no conjunto para aferir a quantidade de crianças sem escola, bem como as matriculadas e a localização das escolas, com o escopo de obter ônibus escolar para transportar as crianças.
Ressalte-se que, atualmente, muitas crianças não estão estudando. E a razão é simples. Seus pais têm medo. Receio fundado nas experiências que vivenciaram e nos relatos de seus vizinhos.
Explico: o caminho que fazem consiste em uma subida nos morros que ligam a região ao Bairro Guarapes, no meio de uma vegetação em que, não apenas uma vez, assaltantes e estupradores violentaram pais e filhos em suas travessias.
Além disto, muitos estudantes matricularam-se em escolas longe de suas casas – devido à falta de vagas nas proximidades – e não têm dinheiro para custear diariamente o transporte.
Isto, por si só, representa violação ao ECA, que em seu art. 53 garante o acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. Viola, ainda, o art. 54, cujo inciso VI assegura o transporte para as crianças, sendo de competência municipal o atendimento em creche, pré-escola e ensino fundamental.

Compreenda-se, ainda, que a Constituição Federal confere absoluta prioridade à educação enquanto direito fundamental da criança e do adolescente, não sendo possível alegar-se, em falha de sua prestação, a reserva do possível e a ausência de previsão orçamentária para explicar sua não efetividade.
Aliás, o Diário Oficial do Município de 28/06/2011 apresentou o balancete do primeiro semestre das contas da Prefeitura e mostrou que esta investiu R$ 17.061.562,30 entre janeiro e junho de 2011, dos quais R$ 6,4 milhões foram destinados para gastos com publicidade (cerca de 40% dos investimentos). A partir do exposto, resta clara a compreensão do que é essencial a esta gestão e, assim, afere-se a óbvia rejeição a alegações de incapacidade econômico-financeira para justificar a não-efetivação de direitos.

Pois bem, nos termos do TAC firmado: a) o levantamento deve ser feito antes de iniciar-se o período de matrícula geral do município; b) com aviso prévio de 10 (dez) dias aos moradores e ao Programa Lições de Cidadania (projeto de Extensão da UFRN que realiza atividade de educação popular em Direitos Humanos na comunidade) e divulgação ampla institucionalmente pela Secretaria Municipal de Educação e; c) 04 (quatro) ônibus escolares devem ser ofertados para garantir o transporte das crianças que estudam em regiões afastadas do Conjunto. Para o seu não cumprimento, a cada dia útil do semestre letivo incidirá uma multa diária de R$ 1.000,00.
Um primeiro levantamento, frustrado, ocorreu no início de janeiro e desobedeceu ao acordado, pois não houve aviso prévio aos moradores nem divulgação pela SME. Sem a comunidade saber a finalidade, data e o horário, bem como os documentos necessários, claramente os dados observados são inválidos e inconsistentes. Falha de planejamento da Secretaria.
Houve a reclamação à Promotoria e uma nova data foi marcada. A “comunicação institucional” foi, frise-se, o telefonema do Ministério Público aos moradores e aos membros do Lições de Cidadania informando a nova data agendada, 26/01/2012, manhã e tarde no CMEI Arnaldo Arsênio de Azevedo, localizado no Leningrado.
Nova violação ao TAC: 1 – encontra-se em andamento o período de matrículas do município e; 2 – Não houve divulgação institucional (a exemplo, carro de som). Como membro do Programa Lições de Cidadania, esta manhã fui ao CMEI para ver como estava se dando esta ação.
Iniciada às 08 horas, era 11 horas  quando conversei com a Chefe do setor responsável pelas matrículas da SME e indaguei quantas famílias haviam efetuado o levantamento: apenas uma mãe com duas crianças.

Sem carros de som, panfletos ou qualquer organização. Aborrecida com meus questionamentos, confessou que se dirigiu esta manhã ao Leningrado sem sequer saber o que deveria ser feito na comunidade. Disse que ligou às 08 horas e perguntou para o Secretário Walter Fonseca o que era pra ser feito ali.
Planejamento? Isto porque é uma comunidade que está cumprindo um TAC e pode sofrer multa diária e responsabilização pessoal pelo atraso ou ineficácia da ação. Perguntei se seria feita alguma divulgação ainda, porque os moradores não sabiam e o resultado, claramente, iria ser inconsistente.
Ao que me respondeu: Ligue pra Secretaria, procure o responsável. Claro, liguei. Para três telefones, inclusive. Mas nenhum destes contatos institucionais funciona. Todos desligados, sem pagamento. Gestão responsável?
Ressaltei que não era minha função fazer o trabalho da Secretaria. A profissional a quem me dirigi trabalha na instituição e é responsável pela implementação do levantamento e das matrículas, espera-se, portanto, que, como gestora pública, tome a atitude cabível para que tenha eficácia a realização de seu trabalho. Em resposta a minha fala, contudo, recebi, em tom de risível ignorância e pretensa superioridade: “Perdoarei você pelo erro de acreditar que eu tinha poder decisório”.
Surreal. Inacreditável ouvir aquilo. Incompetência sistêmica e institucional. Despreparo e ineficiência. Descaso. Não lhe perdoarei por não ter interesse em fazer um trabalho de qualidade e por prejudicar o acesso a educação das famílias do Leningrado – e estas, principalmente, não lhe perdoarão por mais este descaso do Poder Público: Porque o Conjunto Habitacional Leningrado não surgiu de mãos cruzadas.

“O mundo mudo não muda, grita Lenin! – LUTA”. Bandeira construída com as mãos dos moradores e integrantes do Programa Lições de Cidadania representando a palavra-central que caracteriza a comunidade: Luta.


FONTE: Blog do Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti

http://amarocavalcanti.wordpress.com

Para quem estudo Direito e a tal da eqüidistância?

20 nov

Excelente texto escrito por Lucas Sidrim, estudante do curso de Direito da UFRN.

Gosto de ser gente porque sei que o futuro não é dado, mas construído. Logo, sou protagonista do meu verbo, sujeito de minha oração. Sendo gente, aceito a responsabilidade de construir o futuro e estou consciente de que é necessário fazer escolhas, rejeitar opções, realizar decisões: tomar partido.

Não posso, portanto, me evadir de meu papel de agente histórico e transformador da realidade em que estou inserido e que está em contínuo processo de construção e desconstrução. Devo ver, planejar e agir. Devo denunciar e anunciar novas formas de estar – pois o mundo não é, está sendo.

Como estudante de Direito, preciso reconhecer a influência das carreiras jurídicas no avanço e caminhada da sociedade, enquanto mecanismo e instrumento propulsor de mudanças e de manutenção, e, principalmente, como a esperança social de que se concretize o ideal de justiça.

O Direito encontra razão de ser na sociedade e, assim como a educação e a mídia, a cultura jurídica é ideológica, por mais que se paute sob o véu da imparcialidade e da eqüidistância.

Ora, tais coisas realmente existem? Há de fato uma Justiça e um Direito neutros, imparciais e eqüidistantes? Por que e para quem estudo o Direito?

Observa-se uma defesa de Justiça neutra baseada na dificuldade de se estabelecer um senso comum de Justiça. Ou seja, muitas vezes o que é justo para um pode não ser para outro.

Mas será que não existe um mínimo comum deste ideal? Digo, há alguém que considera justo que alguém passe fome no mundo? Que uma criança seja estuprada? Que famílias não tenham onde morar? Há quem discorde da necessidade de superação de tais panoramas de desigualdades e violações?

A própria postura de se afirmar imparcial é escolha de manutenção e de legitimação ideológica velada da ordem social vigente. É uma forma velada de se calar diante das injustiças.

A eqüidistância é outro valor questionável. O Direito não se reduz ao fenômeno legislativo, mas apresenta leis criadas pelos homens, na defesa de valores e bens jurídicos considerados pelos homens como passíveis de tutela (o que se faz a partir de escolhas e decisões), aplicadas e julgadas pelos e para os homens, na composição e atuação do Poder Judiciário referente à resolução de conflitos e manutenção de uma convivência pacífica social, o que pressupõe, aliás, como estado inicial a paz – e não a luta e o conflito de interesses e posições, de onde emerge o Direito.

Sendo o Direito construído desta maneira, devem-se considerar as experiências e vivências prévias na formação do jurista, além da própria cultura jurídica passada e (re)pensada na prática universitária.

Ciente de que a universidade é pública, mas não popular, nesta semana foi lançada uma pesquisa da USP que constata a óbvia existência de uma nobreza togada, concluindo que elites jurídicas provêm de mesmas famílias, universidades e classe social.

O autor da pesquisa faz considerações bastante válidas acerca da composição dos Tribunais Superiores brasileiros, criticando o quesito do ‘notório saber jurídico’, conforme se depreende da seguinte assertiva:

No caso dos Tribunais Superiores, não há concursos. É exigido como requisito de seleção ‘notório saber jurídico’, o que, em outras palavras, significa ter cursado as mesmas faculdades tradicionais que as atuais elites políticas do Judiciário cursaram.

Para além desta questão, havendo maior diversificação social no meio universitário, não apenas no acesso como também na produção do conhecimento produzido e trabalhado, através de maior diálogo entre os saberes popular-acadêmico e também por meio de inserção de indivíduos provenientes de comunidades que vivenciam contextos de vulnerabilidade sócio-econômica, a jurisprudência certamente será diferente e a preocupação e compromisso social se revelarão na defesa de minorias sócio-econômicas, dadas as experiências em situações de opressão.

É preciso, portanto, (re)pensar a cultura jurídica vigente e questionar se a efetiva concretização da Justiça se dá através da distância decorrente de uma postura conservadora e manutendora da eqüidistância e imparcialidade.

Como homem, faço escolhas e coexisto, pois não sou capaz de produzir tudo que preciso para viver sozinho. Preciso ser e fazer nós. Sei que o mundo em que trabalharei não se encontra no espelho, mas na janela e, como sujeito, me vejo em um contínuo exercício de alteridade em que concebo os demais sujeitos e suas orações diante de suas realidades.

Por tal razão, não posso conceber uma justiça que paire acima dos conflitos, distante, neutra e imparcial. Rejeito, assim, a cultura jurídica ensinada em celas de aula e isolada em códigos, que revela em si a conservação e manutenção de contextos de opressão.

Reconheço para mim a necessidade de uma justiça e prática comprometidas com a certeza de que o Direito deve ser instrumento de transformação social frente à desigualdade, opressão e violação aos direitos humanos encontradas em nossas janelas e dentro de tantas casas, enquanto bandeira de esperança e de Justiça.

E você, para quem estuda o Direito?

 

Obras consultadas:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia.

AGUIAR, Roberto A. R. de. O que é Justiça: uma concepção dialética.

A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil. http://www.redebrasilatual.com.br/temas/cidadania/elites-controlam-o-sistema-judicial-confirma-pesquisa-da-usp?utm_source=twitterfeed

 

A Extensão e o papel político do estudante de Direito: Pensando o Brasil como problema

8 nov

Autor: Lucas Sidrim, estudante do curso de Direito da UFRN.

Em 1985, o sociólogo Darcy Ribeiro, em discurso realizado durante a posse de Cristovam Buarque para o cargo de Reitor da Universidade de Brasília (UnB), lembrou a todos a importância da universidade para o seio social em que está inserida, para o Brasil, e atentou para a necessidade de haver a aproximação desta instituição com a população, se apropriando de seus problemas e trazendo-os para o meio acadêmico, com o intuito de buscar resolução para as mazelas sociais.

Passaram-se vários anos desde o pronunciamento deste discurso, intitulado “Universidade para quê?” e a provocação que lhe deu nome permanece atual no contexto das universidades brasileiras.

As leis de mercado interferem de tal maneira na atuação e vivência universitária, que os estudantes se olvidam ou mesmo desconhecem a responsabilidade social do espaço acadêmico que integram. Hoje, se constata intensamente a presença das leis de mercado na escolha das bases de pesquisa que recebem investimento e na escolha das ementas curriculares e assim dos temas trabalhados nas salas de aula.

Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, discorre acerca desta questão em sua obra “A universidade no século XXI”, e, ao tratar deste tema específico, constata o abandono do compromisso e da responsabilidade social que a universidade deve ter, se fazendo necessário (re)pensar, inclusive, aquilo que se passa por universidade e que verdadeiramente não o é, uma vez que, segundo o ordenamento brasileiro, a própria Carta Magna elenca a importância do tripé Ensino-Pesquisa-Extensão para que se estabeleça tal organização.

Por sua vez, na ausência de um destes pilares constitucionais, não há de se falar em Universidade, mas unicamente em instituição de ensino superior, a qual, como se sabe, é construída segundo linhas de montagem com testes de qualidade-igualdade chamados diplomas, como Rubem Alves aponta em seu texto “Quero uma escola retrógrada”.

Frente a este tripé e conhecida a responsabilidade social que a universidade deve portar, é preciso situar a Extensão como o meio de promovê-la e concretizá-la, por meio da relação transformadora e emancipatória com as comunidades que vivem em condições de vulnerabilidade sócio-econômica, conhecendo seus problemas, trazendo-os para o seio da academia, dialogando através da ecologia de saberes e das relações provenientes da interação popular-acadêmico, debatendo as mazelas e buscando a superação dos panoramas de desigualdade, opressão e violação aos direitos humanos.

Para o curso de Direito, com a rara preocupação de se formar profissionais-cidadãos, faz-se essencial romper os muros que separam a universidade e a sociedade, “desencastelando” o ensino jurídico para que haja a aproximação da teoria à prática e, deste modo, a formação do estudante não se restrinja à leitura e memorização mecânica de códigos.

Em sua obra “Para uma revolução democrática da Justiça”, Boaventura pontua que o estudante de Direito se torna competente para realizar a leitura dos autos e incompetente para exprimir destes documentos as injustiças e vivências conflituosas das partes em lide.

Paulo Freire, em suas cartas presentes na obra “Pedagogia da Indignação”, publicadas após o seu falecimento, trata também deste fenômeno ao demonstrar que a educação tem eficácia técnica e ineficácia cidadã, alinhada esta postura aos interesses de uma minoria dominante.

Se a universidade conseguisse conferir excelência à leitura dos autos, tal como o autor aponta, penso eu que não se faria necessário se cadastrar em cursos preparatórios para o Exame da Ordem dos Advogados do Brasil.

O Direito não existe fora da sociedade (Ubi societas, ibi jus) e, portanto, o estudante não pode cogitar aplicar preceitos jurídicos sem conhecer os sujeitos a quem destina zelar e resolver conflitos em prol da convivência harmônica e pacífica da vida em sociedade.

Não pode, ainda, desprezar o conhecimento “pelas vias de corpo” de quem vive o descaso estatal frente às promessas constitucionais, devendo compreender os problemas destes sujeitos não como meros elementos processualísticos, mas sim de maneira a respeitar suas realidades e identidades.

É preciso conhecer tudo isto para que não se compreenda de maneira reducionista o Direito como mero concretizador de leis vigentes, devendo pensá-lo como um instrumento de transformação capaz de estreitar os laços entre o Direito e a justiça social, sendo a universidade o espaço ideal para a apreensão do compromisso social que possibilite a formação de profissionais-cidadãos, através da Extensão que pensa o Brasil como um problema e que considera as leis da vida superiores às leis do mercado, pois, como Chaplin discursou no filme O grande ditador: mais do que máquinas, precisamos de humanidade.