“O teto, o pão e a liberdade
Não são favores, são direitos”
(Noel Delamare)
O Conjunto Habitacional Leningrado não surgiu de mãos cruzadas. Na Semana Santa de 2004 as famílias se organizaram no assentamento que, após briga judicial acerca da titularidade do terreno, em 2006 viu erguerem-se as primeiras casas populares que se tornaram a moradia deste povo que, ainda hoje, afirma que o Conjunto é “um depósito de gente”.
Esta afirmação, repetida por várias vozes em incontáveis vezes (que não tiveram vez e voz, frise-se), decorre da compreensão de que não basta ter a casa, é preciso todos os equipamentos urbanos públicos que conferem infra-estrutura e dignidade a seus moradores. Por óbvio, não é possível suscitar uma vivência familiar e comunitária saudável sem a presença de mecanismos de efetivação de transporte, saúde, educação, lazer, cultura e segurança.
Cada um destes direitos, elencados na Constituição Federal, merece um texto a parte quando se trata do Leningrado, conjunto habitacional em que aproximadamente 500 famílias vivenciaram o processo de desfavelização incompleta no seio norte-riograndense, saindo de favelas, ocupações e assentamentos para as casas que vieram em parceria do Município com o Governo Federal.
São a versão potiguar dos ninguéns de Eduardo Galeano: estatísticas humanas, mãos sem rostos que valem menos que a bala que os mata. Para a Prefeitura, claro. Porém, cada morador tem um relato único de ausência e negação de cuja riqueza não se pode olvidar. Apenas quem sente na pele o preconceito e as violações aos seus direitos sabe como é difícil erguer a cabeça no outro dia. E hoje nova violência acometeu o Leningrado. Esta, mais uma vez, de incompetência institucional.
Em 2011 restou firmado um TAC – Termo de Ajustamento de Conduta – em que a Secretaria de Educação encarregou-se de promover um levantamento no conjunto para aferir a quantidade de crianças sem escola, bem como as matriculadas e a localização das escolas, com o escopo de obter ônibus escolar para transportar as crianças.
Ressalte-se que, atualmente, muitas crianças não estão estudando. E a razão é simples. Seus pais têm medo. Receio fundado nas experiências que vivenciaram e nos relatos de seus vizinhos.
Explico: o caminho que fazem consiste em uma subida nos morros que ligam a região ao Bairro Guarapes, no meio de uma vegetação em que, não apenas uma vez, assaltantes e estupradores violentaram pais e filhos em suas travessias.
Além disto, muitos estudantes matricularam-se em escolas longe de suas casas – devido à falta de vagas nas proximidades – e não têm dinheiro para custear diariamente o transporte.
Isto, por si só, representa violação ao ECA, que em seu art. 53 garante o acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. Viola, ainda, o art. 54, cujo inciso VI assegura o transporte para as crianças, sendo de competência municipal o atendimento em creche, pré-escola e ensino fundamental.
Compreenda-se, ainda, que a Constituição Federal confere absoluta prioridade à educação enquanto direito fundamental da criança e do adolescente, não sendo possível alegar-se, em falha de sua prestação, a reserva do possível e a ausência de previsão orçamentária para explicar sua não efetividade.
Aliás, o Diário Oficial do Município de 28/06/2011 apresentou o balancete do primeiro semestre das contas da Prefeitura e mostrou que esta investiu R$ 17.061.562,30 entre janeiro e junho de 2011, dos quais R$ 6,4 milhões foram destinados para gastos com publicidade (cerca de 40% dos investimentos). A partir do exposto, resta clara a compreensão do que é essencial a esta gestão e, assim, afere-se a óbvia rejeição a alegações de incapacidade econômico-financeira para justificar a não-efetivação de direitos.
Pois bem, nos termos do TAC firmado: a) o levantamento deve ser feito antes de iniciar-se o período de matrícula geral do município; b) com aviso prévio de 10 (dez) dias aos moradores e ao Programa Lições de Cidadania (projeto de Extensão da UFRN que realiza atividade de educação popular em Direitos Humanos na comunidade) e divulgação ampla institucionalmente pela Secretaria Municipal de Educação e; c) 04 (quatro) ônibus escolares devem ser ofertados para garantir o transporte das crianças que estudam em regiões afastadas do Conjunto. Para o seu não cumprimento, a cada dia útil do semestre letivo incidirá uma multa diária de R$ 1.000,00.
Um primeiro levantamento, frustrado, ocorreu no início de janeiro e desobedeceu ao acordado, pois não houve aviso prévio aos moradores nem divulgação pela SME. Sem a comunidade saber a finalidade, data e o horário, bem como os documentos necessários, claramente os dados observados são inválidos e inconsistentes. Falha de planejamento da Secretaria.
Houve a reclamação à Promotoria e uma nova data foi marcada. A “comunicação institucional” foi, frise-se, o telefonema do Ministério Público aos moradores e aos membros do Lições de Cidadania informando a nova data agendada, 26/01/2012, manhã e tarde no CMEI Arnaldo Arsênio de Azevedo, localizado no Leningrado.
Nova violação ao TAC: 1 – encontra-se em andamento o período de matrículas do município e; 2 – Não houve divulgação institucional (a exemplo, carro de som). Como membro do Programa Lições de Cidadania, esta manhã fui ao CMEI para ver como estava se dando esta ação.
Iniciada às 08 horas, era 11 horas quando conversei com a Chefe do setor responsável pelas matrículas da SME e indaguei quantas famílias haviam efetuado o levantamento: apenas uma mãe com duas crianças.
Sem carros de som, panfletos ou qualquer organização. Aborrecida com meus questionamentos, confessou que se dirigiu esta manhã ao Leningrado sem sequer saber o que deveria ser feito na comunidade. Disse que ligou às 08 horas e perguntou para o Secretário Walter Fonseca o que era pra ser feito ali.
Planejamento? Isto porque é uma comunidade que está cumprindo um TAC e pode sofrer multa diária e responsabilização pessoal pelo atraso ou ineficácia da ação. Perguntei se seria feita alguma divulgação ainda, porque os moradores não sabiam e o resultado, claramente, iria ser inconsistente.
Ao que me respondeu: Ligue pra Secretaria, procure o responsável. Claro, liguei. Para três telefones, inclusive. Mas nenhum destes contatos institucionais funciona. Todos desligados, sem pagamento. Gestão responsável?
Ressaltei que não era minha função fazer o trabalho da Secretaria. A profissional a quem me dirigi trabalha na instituição e é responsável pela implementação do levantamento e das matrículas, espera-se, portanto, que, como gestora pública, tome a atitude cabível para que tenha eficácia a realização de seu trabalho. Em resposta a minha fala, contudo, recebi, em tom de risível ignorância e pretensa superioridade: “Perdoarei você pelo erro de acreditar que eu tinha poder decisório”.
Surreal. Inacreditável ouvir aquilo. Incompetência sistêmica e institucional. Despreparo e ineficiência. Descaso. Não lhe perdoarei por não ter interesse em fazer um trabalho de qualidade e por prejudicar o acesso a educação das famílias do Leningrado – e estas, principalmente, não lhe perdoarão por mais este descaso do Poder Público: Porque o Conjunto Habitacional Leningrado não surgiu de mãos cruzadas.
FONTE: Blog do Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti