Impossível passar despercebido o “aniversário” de 48 anos do Golpe Militar brasileiro, ocorrido em 31 de Março de 1964, ainda mais quando existe uma comemoração organizada pelos próprios militares, que parecem ter saudades daqueles tempos. Creio que esse ato é mais uma afronta à presidente Dilma Rouseff, mas não importa. Na verdade, esse ato comemorativo me fez refletir: comemora-se o que exatamente? Os anos em que os militares estavam no poder, com suas regalias, fazendo o bolo crescer sem dividi-lo? Um dos períodos em que a corrupção rolou solta com a construção das famosas obras faraônicas? Os assassinatos até agora acobertados? O cerceamento da liberdade de expressão?
Não vejo motivo pra comemorar. Devemos, sim, lembrar desse episódio fatídico em nossa história, mas buscando encontrar as falhas para que nunca mais ocorra nada parecido. Não podemos esquecer também a dor das pessoas que perderam entes queridos, dos torturados sem motivos aparentes, dos corajosos que não se calaram diante das atrocidades do regime ditatorial. Nesse ponto vale salientar que já ocorre um forte movimento no Brasil visando esclarecer os crimes praticados pelos militares (a criação da Comissão da Verdade é um exemplo disso), bem como rever o “perdão” concedido pela Lei da Anistia. Seguir os passos dos nossos vizinhos sul-americanos e formalizar as investigações seria também uma boa alternativa. Argentinos, uruguaios e chilenos já iniciaram esse processo a algum tempo, os primeiros instituindo a inovadora Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas (Conadep); no Uruguai formou-se a Comissão para Paz e revogou-se a lei que concedia anistia aos militares; já os chilenos antes mesmo da queda de Pinochet haviam começado o processo de investigação.
Enfim, já avançamos consideravelmente desde o término da ditadura militar brasileira. Estamos sustentados por uma Carta constitucional que tutela nossos direitos fundamentais, garantindo um Estado Democrático de Direito no qual nenhum modo de governo autoritário tem espaço. Princípios como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório são exemplos desse avanço em nosso texto constitucional, imprescindíveis ao atual panorama jurídico e político no Brasil. Creio que o momento para discutir os absurdos do autoritarismo militar é agora! Ainda mais por termos uma Chefe do Executivo que sentiu na pele os desmandos do período ditatorial, facilitando a aproximação com as diversas famílias angustiadas pelo sentimento de injustiça.
Agora, imaginem só viver numa realidade onde não há as supracitadas garantias mínimas, como a dignidade da pessoa humana, a prestação jurisdicional isenta de qualquer vício, etc. Esse quadro foi observado tanto em nosso país, à época da ditadura, como também na excelente obra de Franz Kafka, O Processo. Imerso num ambiente despótico, onde a luta pelo poder tornava-se rotina diante dos abusos das autoridades tchecas e, posteriormente austro-húngaras, o autor nascido na cidade de Praga criticou de forma inteligente a relação da sociedade perante o Estado e o Poder Judiciário na primeira metade do século XX. Por meio do personagem Joseph K., retrata-se o panorama jurídico impiedoso e totalmente divorciado dos interesses dos cidadãos, que não tomam conhecimento de seus processos facilmente, a não ser que se conheça alguém influente nos tribunais. Além disso, a alienação das pessoas acusadas também fica evidente, na medida em que a ignorância em relação aos procedimentos adotados na Justiça e o desencontro de informações acabam atrapalhando o andamento dos processos, ensejando decisões desesperadas, como ocorreu com o desiludido K. no final do romance. Esse é o tipo de obra que nunca perde a atualidade, pois, de certo modo, a obra serve para pensarmos as vicissitudes do sistema jurídico moderno, as heranças do autoritarismo da ditadura, do coronelismo…
Assim, “O Processo” renova o interesse em lutar por instituições democráticas e entender o sofrimento dos que viveram sob regimes autoritários. Não podemos olvidar os acontecimentos da ditadura brasileira, pois estaríamos dando as costas para nossa história e cerceando o direito de memória do povo brasileiro. Acabaríamos, como o próprio K., deixando a vergonha se sobrepor a nossa existência. Acabaríamos “como cães”.
PS¹: Aproveito também para indicar a página no Facebook do Centro de Referência em Direitos Humanos, iniciativa bacana da galera da UFRN. Segue o link para maiores informações: http://www.facebook.com/crdhufrn
PS²: Agradecimentos pela colaboração a Lara Sena.